O acesso a um sistema de transporte público coletivo de qualidade pode transformar vidas. Sistemas de transporte de média e alta capacidade têm sido a forma mais utilizada para comportar os deslocamentos de grandes distâncias nas cidades, seja para trabalho ou lazer. No entanto, esses sistemas não são apropriados para deslocamentos mais curtos, além de não fornecerem serviços de porta-a-porta. Os deslocamentos em cidades grandes precisam ser vistos em cadeia, com integração intermodal, nos quais o transporte de público cumpre parte dos trechos. Assegurar que todos tenham acesso a sistemas completos de transporte, com integração efetiva, é uma tarefa fundamental para tornar as cidades mais conectadas, justas e sustentáveis.
A avaliação do acesso aos sistemas de transporte é uma tarefa complexa que exige entendimento sobre o território por onde os corredores de transporte passam, assim como o entorno das estações. É fundamental entender os pontos de origem e destino das viagens da população, e a relação destes pontos com a rede de transportes. Entendendo a importância desse tipo de informação no âmbito do planejamento das cidades, o ITDP vem monitorando o número de pessoas nas cidades que vivem próximas do sistema transporte estruturante por meio de um indicador denominado PNT, sigla para o termo original em inglês People Near Transit. O indicador PNT aponta o percentual da população do município ou cidade metropolitana que reside em um raio de até 1km de estações de transportes de média e alta capacidade. Consideramos 1 km por ser uma distância que pode ser percorrida a pé por uma grande parcela da população em 15 minutos. O objetivo do ITDP ao monitorar o PNT é gerar métricas que possam facilmente ser utilizadas para fins comparativos entre cidades e para acompanhar a evolução da expansão das infraestruturas de transporte, assim como do adensamento populacional nos perímetros urbanos, em áreas com infraestrutura existente.
Nos últimos anos, observamos que algumas cidades brasileiras têm obtido progressos com seus programas de expansão e qualificação dos sistemas de metrô, trens urbanos, BRT (Bus Rapid Transit) e VLT (Veículo Leve sobre Trilhos). No Rio de Janeiro, por exemplo, aproximadamente 36% da população da cidade vivia, em 2010, no entorno de 1km das linhas de metrô e trens. Em 2015, com a implementação dos BRTs TransOeste e TransCarioca, esse número aumentou 11 pontos percentuais, passando para 47% do total da população. Isso significa a cobertura de quase 3 milhões de pessoas pelo sistema de média e alta capacidade. Ainda assim, apesar do aumento, 53% da população na cidade do Rio não tem acesso a esse sistema, número que é ainda menor quando falamos de sua Região Metropolitana, onde 72% não se encontra nas proximidades do sistema de transporte estruturante.
E como ampliar o acesso ao transporte público?
Obviamente, expandir a malha de transporte é o primeiro passo para ampliar a cobertura dos sistemas de transportes. Um estudo recente do ITDP demonstrou que o Brasil precisa triplicar sua infraestrutura de alta e média capacidade, totalizando 1.975 km até 2030. Para alcançar essa meta, o país teria que construir em média 132 km por ano de 2016 a 2030, em aglomerações urbanas com mais de 500 mil habitantes.
A expansão dos sistemas precisa ocorrer em áreas mais densas, garantindo o atendimento à população em distâncias que podem ser acessadas a pé e de bicicleta. A expansão também deve vir associada a outras medidas fundamentais:
- Priorização do entorno dos corredores em estratégias de adensamento do território,
- Melhoria da qualidade dos serviços de transporte público, tais como capacidade adequada dos veículos, regularidade, conforto, limpeza, segurança, entre outros, e
- Implantação efetiva de integração intermodal: infraestrutura física, operação/informação e tarifária.
A bicicleta como aliada no acesso ao transporte público
A distância até a estação não é o único fator para se medir o acesso ao sistema de transporte de média e alta capacidade. É fundamental que os caminhos até as estações ofereçam segurança, calçadas adequadas e agradáveis para se caminhar, infraestrutura cicloinclusiva, atrativos no percurso (oferta de comércio local e mobiliário urbano, por exemplo), abrigo e proteção contra o sol e a chuva. Assim, devem buscar não só integrar diferentes usos do solo (empreendimentos comerciais, instituições de saúde e ensino, equipamentos de cultura, áreas verdes etc.) no entorno das estações, como também promover a descentralização das oportunidades de emprego e habitação.
A bicicleta é um dos meios de transporte mais eficientes já inventados. O uso da bicicleta em distâncias curtas pode reduzir significativamente o tempo de deslocamento até a estação, por exemplo, um percurso que leva 30 minutos a pé, pode ser realizado em 10 min de bicicleta.
Pensando nisso, o ITDP vem monitorando o indicador “PNT+Bike”, de forma a mapear a população que se encontra em um raio de 3 km de sistemas de transporte, distância percorrida facilmente de bicicleta. Essas áreas, portanto, são prioritárias para investimento em infraestrutura cicloinclusiva, pois é onde há um grande potencial de alimentação ao sistema de transporte de massa.
O resultado deste indicador para a cidade e região metropolitana do Rio de Janeiro é significativo. Na cidade, 87% da população se encontra até 3 km do sistema de média e alta capacidade, enquanto que na Região Metropolitana 59% da população teria acesso a este sistema caso houvesse integração efetiva entre a bicicleta e as estações de transporte público. De todo modo, é importante ressaltar que parte da população pode continuar excluída do direito à mobilidade mesmo que consiga chegar às estações caminhando ou de bicicleta, principalmente por não poder arcar com os custos da tarifa. Nesse sentido, integração efetiva da bicicleta com outros modos de transporte é fundamental para as viagens de longas distâncias, principalmente para as pessoas com menor renda que moram longe do transporte público.
Mas o que seria uma integração efetiva?
O planejamento cicloinclusivo precisa ser considerado como parte do planejamento do sistema de transporte público. É necessário pensar no entorno das estações de modo que se tornem bacias cicloviárias, isto é, unidades alimentadoras do sistema de transportes. Pensados a partir da bicicleta, o planejamento e a gestão desse sistema devem contemplar também o acesso às estações, por meio de rotas seguras e confortáveis para pedalar.
Além da implementação de infraestrutura dedicada à bicicleta que combine diferentes tipologias e desenhos, é necessária a implantação de paraciclos e bicicletários dentro das estações – ou o mais próximo possível, permitindo que as bicicletas sejam guardadas com segurança enquanto o passageiro continua seu deslocamento no transporte coletivo. Paralelamente, um conjunto de estratégias devem ser incentivadas, tais como a permissão para o embarque de bicicletas no transporte coletivo em horários pré-definidos, implementação de sistemas de bicicletas compartilhadas com integração tarifária e operacional, sistema único de informações, medidas de desestímulo ao uso do automóvel, redistribuição do espaço viário e redução dos limites de velocidade.
Em Guangzhou, na China, o sistema de bicicletas compartilhadas é totalmente integrado ao corredor de BRT. Inaugurado em 2010, é constituído por 113 estações de bicicletas localizadas nas estações de transporte, disponibilizando mais de 5.000 bicicletas para o primeiro e último trechos dos deslocamentos. Mais de 20.000 pessoas utilizam o sistema diariamente.
Fortaleza é a primeira cidade do Brasil a ter oficialmente um sistema de bicicleta compartilhada integrado ao transporte público. O empréstimo das bicicletas é feito por até 14 horas, retirando a bicicleta na estação mais próxima através de aplicativo em smartphones ou via Bilhete Único.
Seguindo a tendência de outros países, o uso da bicicleta nas cidades no Brasil tem crescido bastante, o que pode ser verificado pela expansão das ciclovias e ciclofaixas, implantação de bicicletários, ampliação dos sistemas de bicicleta compartilhada, surgimento de serviços de entrega de documentos (bike courier), realização de campanhas de educação de trânsito e pelas políticas de redução da velocidade em várias cidades de médio e grande porte.
Porém, há muito caminho pela frente ainda, principalmente no que se refere ao reconhecimento do usuário da bicicleta como meio de transporte. Além da comum associação da bicicleta às atividades de lazer e nos fins de semana, o recente direcionamento das políticas cicloviárias a setores demograficamente privilegiados negligencia a maior parte das pessoas que já a utilizavam para deslocamentos cotidianos, o que leva, dentre outros, à implantação de infraestrutura descolada das regiões de maior uso. Em geral distantes dos centros urbanos, esses lugares devem ter prioridade na implantação de políticas que visem qualificar o uso da bicicleta como meio de transporte e efetivar sua integração ao transporte de média e alta capacidade.
Assim como os demais modos de transporte, a bicicleta não é a única solução para os deslocamentos em uma cidade. Porém, sua associação a um sistema de transporte estruturante conectado e acessível parece ser a forma não só mais eficiente, mas mais justa de se construir ambientes urbanos sustentáveis.